Cinema e Coração Aberto
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O que é um bom filme?

Vou ver daqui.

Por sorte histórica tive durante o fim de minha infância acesso aos canais da HBO. Pera…Na verdade… era apenas um, pois a HBO 2 passava a mesma programação da HBO 1, só que seis horas depois. Imagine, acordar, assistir o fim de um filme, e no início da tarde, o começo do mesmo filme! Na época eu não tinha a preocupação de ter que pagar os próprios boletos, então rolava!

Vi um monte, sem nenhum critério. Em sua maioria, filmes americanos, imagino, mas também assisti outros filmes… nada a ver. Nesta época se consolidou meu primeiro vínculo com filmes.

O segundo vínculo foi com minha irmã, através do passeio clássico à cidade para assistir um filme. Antes de continuar a prosa, vou contar sobre este passeio que fazíamos, roteiro até hoje disponível para você! Porque São Paulo é uma cidade que permite que você vá até ela, morando nela. Como assim? Preste atenção nos filmes, novelas e minisséries, quando o ambiente é a Cidade de São Paulo, elas acontecem em Pinheiros, Jardins, Paulista, mas, se estas produções forem em Paralheiros, Guaianases, Perus, Brasilândia, não é mais na Cidade de São Paulo, a apresentação da obra será diferenciada, “Na Periferia de São Paulo…”. As produções audiovisuais consolidam a ideia de cidades distintas, duas cidades dentro da mesma cidade. E até um certo tempinho atrás, apenas uma delas possuía salas de cinemas | e restaurantes, consultórios médicos, laboratórios de exames, museus, calçada, cesto de lixo na rua, metrô, direitos sociais…| permitindo assim o roteiro que apresento.

Antes, lembrei de uma coisa! Talvez por isso demorou tanto para minha mãe, quando saía de nosso bairro, deixar de dizer: “Vou lá na cidade.”

Vamos lá: para usufruir deste delicioso passeio, obviamente, precisa morar na Periferia. Primeiro, procure um ônibus que tenha como destino Praça Ramos, Praça do Correio, Terminal Bandeira, Terminal Dom Pedro, Terminal Princesa Isabel, dependendo de qual bairro você mora, todos os ônibus te levam para o mesmo ponto final.

Aguarde duas horas…

Chegou! Antes de ir ao cinema, aproveite que está em São Paulo e compre camiseta, tênis, calça, mp3 | Uma vez comprei um com 120Mb, uau! | e tudo mais. Agora sim, ao cinema! As opções diminuíram muito atualmente, havia o Marabá, Ipiranga, Olido… agora tem o Marabá e o sem igual Spcine Olido.

Pipoquinha do tio com bacon e queijo, claro.

Curtiu o filme? Agora a segunda parte do passeio. Está com fome? O que fazer se o dinheiro é curto? Jantar em casa, mas para aguentar até lá…

Água, salgadinho e algum doce.

O kit básico para voltar para casa e sobreviver a mais duas horas de viagem e | muito importante | não se esqueça, fique na terceira fila do ônibus, pois para comer à vontade, precisa ir embora sentado! Gostou? Esta é uma dica de… turismo. Eu e minha irmã fazíamos muito isso.

Uma viagem dentro de outra: você viaja até o filme, para viajar no filme.

O terceiro vínculo me permitiu acessar a chamada cultura. Aqui vale retomar o raciocínio sobre a cidade. Existe cultura periférica e cultura. Percebeu a repetição da ocultação?

Existiu ao lado do SESC Pompéia uma sala de cinema chamada Cine Arte Lilian Lemmertz. E levava só uma hora para chegar, uhu! Lá assisti filmes cult, como Bicho de Sete Cabeças, Fale com Ela e Possessão. Era uma sala charmosinha, minúscula e com todas as cadeiras vermelhas.

Estes três conjuntos de experiências criaram relações significativas com os filmes, mais, mesmo sem perceber, impediram-me de ter gostos e preferências com clareza, ao invés disso, me definiram alguns princípios para avaliá-los. Por enquanto, são três:

1º Qualquer enredo me fascina, desde que me emocione

“Marcelo, você gosta de que tipo de filme?” A resposta curta é ficção científica, como Interestelar, mas e a cena de Cooper indo embora, na contagem regressiva, deixando a Murphy para trás… ahh… me emociona. Ao dizer isso corro o risco de reforçar uma ideia de emoção. Vamos corrigir. Quando a Mulher Maravilha entra em cena pela primeira vez, como heroína, em Batman vs Superman, e salva o Batman? Putz, que emoção! Bati palma no cinema, “Salve eles, deusa que está acima de todas as coisas!”

No final do filme Top Gang — Ases Muito Loucos, tem uma cena em que o caça vai passar em frente ao sol, mas ele passa por trás! Genial pois causa a mais nobre das emoções, as risadas.

Eu senti a angústia de uma vila turca que no filme 1945 recebeu a visita de dois indivíduos, vindos de trem, anunciados com a seguinte frase enigmática: “Eles voltaram”. Em Toy Story 3, a cena que um segura a mão do outro, naquele instante em que não há mais nada a fazer e o fim inevitável está por… Espere, só um momento. Uma lágrima. Deixa eu respirar.

E a emoção filosófica de Medianeras? Não, nem todo filme precisa ser… cabeça, não. Mas também são emoções a serem degustadas, por meio de profundas reflexões, filosóficas ou sociais.

2º Filme não tem hora nem lugar

Naquela história da HBO, às vezes, por acordar muito cedo, ligava a TV, assistia um filme jogado no sofá, com remela no olho e mesmo assim era uma baita experiência. Filme não se reduz, não exige, não se limita a salas de cinemas ou home theaters. Penso que filmes bons não precisam de rituais, não possuem exigências superficiais, como o silêncio, mas podem te oferecer uma experiência significativa às 6h da manhã, no sofá, ou na tela do Cinemark, no ônibus, trem, com os amigos, sozinho, deitado de conchinha, na Sala do Reserva Cultural, comendo pipoca, bala, lanche ou chocotone.

O filme não se gruda a exterioridades. A gente sim. Ao passar a vida assistindo filmes no cinema “Esse filme é bom só no cinema!” Mas se assiste só em casa “Não gosto de assistir filme no cinema.” A bagagem cultural de cada um que exige quaisquer rituais para assistir filmes, não o filme.

Imagine, contra todos seus rituais, você deixa a Netflix de lado e vai ao cinema. E mesmo assim, você gosta do filme. Neste cenário a produção vai precisar realmente ser boa.

O bom filme não exige ritualidades, nem a sua atenção exige pois a conquista. Só exige uma coisa: que você esteja aberto a ele.

3º Todo filme aliena

Antes, é importante dizer, existem críticas aos filmes americanos por justificáveis questões ideológicas, mas todos já sabemos, certo? Continuemos.

Você já deve ter ouvido falar que filme de massa aliena, ou melhor, filme hollywoodiano, mais especificamente, filmes de ação alienam. Vamos refletir sobre isso, reduzindo a questão da alienação ao próprio consumo de audiovisual.

Quem defende essa ideia de alienação | e gosta de filmes | deve estar alienado a outros filmes. “Como assim?” Todos nós definimos padrões estéticos, filosóficos, éticos e os utilizamos para escolher os filmes, com a expectativa que atendam esse padrão. Aqui está o perigo do filme bom.

Talvez você ache que o filme bom é aquele que te dá o que você espera dele. Se te oferece outra coisa, não é bom.

Se gosta de romance e o filme termina triste, você não gosta. Se prefere filmes coloridos, e assiste algum filme com um ou dois tons muito marcantes… mais ou menos. O filme não explodiu sua cabeça? Previsível demais, ou seja, ruim. “Eu gosto de filme que me surpreenda” Pois é, esse é seu padrão. Se o filme não te surpreender, já sabe.

Então, cada vez mais, assistimos filmes reforçadores dos nossos próprios padrões, que nos satisfazem e, por consequência, nossos padrões se reforçam ainda mais, é cíclico.

Cada vez mais alienado em si, afastado de outras estéticas, filosofias e emoções.

Tanto o frequentador assíduo do Reserva Cultural (e de toda região da Paulista, da Cidade) quanto o do Shopping Norte Cantareira(e demais shoppings da Periferia) são alienados, dentro de seus padrões.

A diferença é que, seguindo o raciocínio Cidade/Perifeira, o frequentador do Shopping pode ser chamado de alienado, até talvez sinta-se como tal. Mas o carinha do Reserva tem certeza que é livre da alienação do mercado e não percebe que apenas seu mercado é diferente. Talvez esse seja o mais alienado, pois não sabe que é.

A partir desta reflexão, na mesma semana assisti Os Vingadores — Guerra Infinita, da temida indústria americana, e Esplendor, da não-temida indústria japonesa. Mesmo em filmes tão distintos, procuro perceber a beleza e reconhecer a qualidade que oferecem dentro daquilo que se espera de cada um. Sendo assim,

Filme bom é aquele que, sem exigir rituais, ao cumprir muito bem o que se propõe a oferecer, emociona meu coração aberto.


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